Esperança longe de casa - A transformação na vida de um jovem refugiado

David é um jovem de 19 anos, de sorriso largo e tranquilo. Entre os amigos, ele escolheu ser chamado pela palavra Musankishayi, porque significa alegria, na língua natal Tshiluba, como forma de demonstrar o que busca para seu futuro: que é a felicidade.

Claire, de 9 anos, é irmã de David e é uma menina tímida com quem vem de fora. Ela é de poucas palavras, mas com o olhar profundo e observador, e guarda nas suas cicatrizes visíveis, uma história de luta pela vida e de renascimento.

Os dois são sobreviventes de um massacre ocorrido há sete anos no vilarejo onde viviam com seus pais e irmão, na região de Kasai, República Democrática do Congo (RDC), desde lá até então eles são refugiados no assentamento em Lóvua, província da Lunda Norte em Angola, fronteira com a RDC.

Enquanto a violência escalava e se tornava cada vez mais iminente, a família não teve tempo de se organizar para fugir. David e Claire, na altura com 13 e 2 anos de idade, tiveram que testemunhar coisas que nenhum ser humano deveria vivenciar, ainda mais sendo crianças.

Naquela madrugada, os pais deles foram raptados pela milícia rebelde e assassinados cruelmente. O irmão mais velho, traumatizado com a situação, foi levado em choque ao hospital. David conseguiu recuperar algum dinheiro que sua mãe havia juntado, enquanto vendedora ambulante, que serviu para comprar o último leite para alimentar a sua irmã, que ainda era pequena, durante os momentos de tensão e incerteza.

“A Claire estava com fome, e eu encontrei onde a mamã escondia o dinheiro. Consegui escapar e buscar um pouco de leite para ela aguentar mais um pouco”, lembrou o jovem.

A saga de David e Claire na luta pela sobrevivência começaria naquele momento.

BUSCANDO A SOBREVIVÊNCIA
Já era noite, e enquanto eles se escondiam em casa de vizinhos, foram atacados, e a casa foi incendiada. David livrou-se das camisolas que ele e Claire vestiam para se manterem aquecidos e conseguiu escapar, carregando a pequena por uma saída nos fundos da casa.

Descalços e mal vestidos, caminharam dias e dias, sob chuva e sob sol, cruzando perigosamente por vilarejos devastados pelo conflito, atravessando áreas de mata fechada, quase sempre desacompanhados. Às vezes, juntavam-se a alguns grupos com mais sobreviventes na mesma situação. Mas sem comida, o choro de fome da pequena Claire chamava a atenção enquanto procuravam por abrigo, e representava um risco à vida de todos. David foi aconselhado a deixar a pequena à própria sorte, e a seguir em frente. Mas ele nunca desistiu da sua irmã, e enfrentou todo o tipo de dificuldade para mantê-la a salvo e levá-la consigo.

“Me disseram para meter a Claire em um buraco à beira do rio e esquecer”, lamenta o adolescente.

Em alguns momentos, pelo percurso, encontravam lavras de amendoim, mandioca e milho, e foi isto que os serviu durante os quase 30 dias que estiveram fugindo, em direcção à fronteira com Angola.

Quando finalmente alcançaram um posto fronteiriço, os policiais angolanos os receberam e os acolheram. Naquele espaço seguro, eles receberam roupas e comida; mas tiveram de aguardar por cerca de uma semana até a chegada do ACNUR e a Cruz Vermelha, em conjunto com o Governo de Angola. Dai foram levados, enquanto crianças desacompanhadas, de helicóptero, junto com outras pessoas feridas e os idosos,  até o primeiro local em que os refugiados eram oficialmente instalados, em Cacanda, na cidade do Dundo, norte de Angola.

“Nos deram alguma roupa, nos deram pão e mortadela. Lembro do sabor do pão. Foi melhor pão que comi na minha vida”, comemora David. 

David recorda-se de todos os detalhes desta abalante trajectória pela sobrevivência, e fala com uma mistura de orgulho e tristeza de como resistiu e carregou consigo o que considera como seu bem mais precioso, a sua irmã Claire:

Quase não conseguimos embarcar naquele helicóptero, porque muita gente queria subir ao mesmo tempo, e me puxavam para fora. Mas eu tirei uma força tão grande dentro de mim, e segurei  a minha irmã com tanta força, e um policial me ajudou, e ela e eu conseguimos entrar. Quando entrei, agradeci mesmo a Deus no coração.

CHEGADA A ANGOLA
A resposta à emergência em Angola, precisou de ser rápida, e novas instalações começaram a ser montadas a 120km da cidade do Dundo, em Lóvua para estabelecer os refugiados. Quando foram reassentados para lá, David conta que, esperava encontrar tudo bem organizado, mas que no final das contas, o lugar reunia muito poucas condições de habitação, higiene, segurança, entre outras, e que precisaram ajudar a retirar a mata enquanto montavam os abrigos para os milhares de congoleses que chegavam a cada dia. Nesse período de estruturação, a violência era algo visível, crítico e transversal.

David e Claire foram enviados para o Espaço de Acolhimento (Espaço das Crianças Desacompanhadas), que recebeu mais de 80 crianças, que estavam sem as suas famílias, os irmãos órfãos ficaram sob os cuidados de uma família substituta.

Nessa altura, as equipas da World Vision e da Cruz Vermelha trabalhavam juntas para identificarem as famílias e reintegrarem as crianças que acabaram por se separar de seus pais ou cuidadores enquanto enfrentavam o cenário de guerra. Em paralelo, conseguiram identificar voluntários entre os refugiados que seriam capacitados como mobilizadores e promotores da protecção das crianças, como forma de salvaguardá-las.

O jovem refugiado David, relatou que a negligência, os maus-tratos e as injustiças, nesse período, eram constantes, e que ele se sentia muito revoltado quando agredissem a sua irmã, que era ainda uma criança muito pequena.

“Nesses momentos, eu lembrava muito da minha mãe e eu pensava como ia conseguir cuidar da Claire no futuro. Pensava que isso precisava acabar e chorava, mas não deixava ela me ver chorar, para ela não ficar triste também. Eu emagreci muito durante aquele tempo, fiquei muito preocupado”, falava David em lágrimas.

O mau comportamento, a desobediência e a violência que David exprimia diariamente, se tornavam suas marcas registadas. Por sua forma de reagir a este ambiente hostil, ele ficou conhecido como um jovem problemático, de difícil convivência.

UM RECOMEÇO
Com o repatriamento da família que estava a gerenciar o Espaço de Acolhimento, para o Congo, uma ponta de esperança surgiu para os irmãos, com a entrada de Mamã Genese e Papá Etienne. O casal já trazia experiências prévias de trabalho com crianças em situações vulneráveis em seu país de origem. Genese é licenciada em Assistência Social e Etienne é técnico em Ciências Sociais, e com o acréscimo das formações promovidas pela World Vision em Angola, como “Celebrando a Família” e “Protecção à Criança”, e troca de conhecimento acerca do tema, ambos puderam assumir com propriedade a liderança do espaço e o cuidado dos pequenos.

David e Claire viram as suas vidas retomar á um bom rumo, num ambiente mais acolhedor e livre de violência. Genese e Etienne receberam os dois como se fossem seus filhos, e procuram diariamente incentivá-los a seguirem seus passos “estudar para que possam ter um futuro melhor”. Com o apoio e a constância das visitas da equipa de protecção à criança, o bem-estar das crianças órfãs ou desacompanhadas passou a ser garantido.

“Eles nos cuidaram muito bem desde que chegaram. Não nos batiam, e nos davam mais comida. Sempre me senti bem depois que eles vieram para cá. Fiquei feliz porque nos colocaram no mesmo macaron (documento de identificação das famílias refugiadas)”, afirmou David.

Entre os desafios novos apresentados, David precisava aprender rapidamente a língua portuguesa, e foi o motivado pelo qual os pais adoptivos o envolveram a participar das formações organizadas pela gestão do assentamento, que nestes sete anos são promovidas pela World Vision em Angola. David voltou a frequentar a escola, e actualmente está a fazer a 9ª classe. A mudança tornou-se evidente.

“De adolescente indisciplinado, a jovem exemplar”, aos olhos de Genese e Etienne, bem como por parte da equipa da WVA que o acompanha desde a sua chegada ao assentamento, ele agora é considerado jovem responsável, que encontrou seu caminho, pois ouviu os conselhos dos pais de acolhimento, e seguiu os ensinamentos que lhe foram repassados, como fortes princípios morais, e sobretudo baseados nas palavras de Jesus.

“O David era uma criança muito difícil quando chegou aqui. Ele se envolvia em muita desordem, era violento, mentia bastante. Ficava muito transtornado quando algo acontecia com a Claire. Aos poucos nós conseguimos ficar mais próximos dele, através das formações que promovemos e que procuravam abordar a questão do combate aos maus tratos e da protecção à criança, seus direitos e seus deveres. A convivência dele com a nova família da mamã Genese e do Papá Etienne, trouxe um ambiente de cuidados e harmonia. Ele foi ficando mais calmo, mais responsável. Se tornou um jovem que todos nós que vimos a mudança acontecer, temos apreço. Ele passou ser um exemplo, e a auxiliar os outros adolescentes a mudarem seus comportamentos”, relata Mbanza Pitra, que na época actuava como ponto focal da World Vision para a  protecção à criança no assentamento.

As recompensas pela boa integração que obteve da família, e no círculo de convivência não cessam.  “David é nosso orgulho. É um jovem adulto responsável, um filho que nos ajuda em tudo e confiamos nele”, exalta Genese.

Há cerca de seis meses, Genese e Etienne conseguiram promover uma mudança impactante na vida de David e de seu filho biológico, Natanaël. Com o subsídio que ganham, enquanto cuidadores do Espaço de Acolhimento, eles puderam auxiliá-los financeiramente para construírem uma casa, próxima do local onde vivem. Desta forma, como jovens, já maiores de idade, poderão entrar para a vida adulta com o compromisso de cuidarem do seu próprio lar.

ROTINA DE POUCAS EXPETATIVAS
Apesar do ambiente de aparente tranquilidade, David, Claire e os mais de 6 mil refugiados em Lóvua, passam seus dias no assentamento em uma rotina com poucas opções e oportunidades.

Pela manhã, os primeiros sinais da aurora dão o alerta para o despertar. A fuba transformada em funge, serve de pequeno-almoço. Depois de finalizar a limpeza do quintal do Espaço de Acolhimento, David segue por cerca de dois quilómetros a pé até chegar na escola. Quando as aulas terminam, retorna ao encontro dos pais e dos irmãos, para almoçarem todos juntos e auxiliar a Claire com os deveres de casa e escolares, estudar um pouco, e assistir televisão até a hora do jantar completam sua jornada.

A escassa diversidade alimentar é a realidade à mesa das famílias assentadas.

Desde o início da assistência dada aos refugiados, o World Food Program (WFP) tem sido o responsável pelo aprovisionamento dos bens alimentares básicos no assentamento. Rações mensais são distribuídas com o apoio da WVA. O complemento das refeições é feito com o pouco que alguns refugiados conseguem colher das pequenas lavras, estabelecidas nos terrenos que lhes foram concedidos pelo Governo. A maior parte destas, são produção de mandioca, e outras são de folhas como gimboa etc. Alguns arriscam-se a criar porcos, cabritos ou galinhas para subsistência.

Como a maior parte dos refugiados, não tem a possibilidade de conseguir um emprego fixo; David, gosta da oportunidade de poder participar como auxiliar nos dias da distribuição dos alimentos, organizada pela World Vision, pois consegue fazer algum dinheiro. Com estas somas que vai juntando, costuma ir ao município de Lóvua, ou ao Dundo a passeio, e compra roupas para si e para a irmã. Eventualmente, recorre ao pequeno mercado local, que se criou dentro do próprio assentamento, para adquirir produtos de higiene ou outros bens alimentares complementares.

Aos sábados, ele se reúne com os integrantes do Comité Juvenil. O grupo foi criado com estímulo das equipas da WVA, no âmbito da Campanha It Takes a World, com o intuito de ser um espaço de discussão sobre os dilemas que os jovens enfrentam no assentamento, e partilha com os mais velhos, que participam com conselhos para melhorar a convivência. Temas sobre os Direitos e Deveres dos Jovens, casamento precoce, saúde sexual e reprodutiva, nutrição, melhores práticas de higiene, mas sobretudo o combate à violência, são abordados e debatidos em reflexões pertinentes ao contexto.

Nos domingos, após ao culto religioso, é tempo de estar com os amigos nas sessões do Comité de Estudos dos Jovens Intelectuais do Lóvua (CEJILO). Junto do irmão Natanaël, um dos líderes do grup, David entretém-se com a leitura de poemas, e conversas sobre o que aprenderam durante as exposições já ministradas, como forma de se manterem actualizados.

Na espera que se alarguem as possibilidades de diversão, os jovens anseiam pela inauguração do Centro Sociocultural, que está em fase terminal de construção, que irá abrigar aulas de canto e música, uma biblioteca comunitária e aulas de formação em corte e costura.

ESPERANÇA NO FUTURO
Enquanto aguardam que o tão sonhado Bilhete de Identidade seja concedido pelo Governo Angolano, para poderem gozar dos mesmos direitos que qualquer cidadão, e realizarem as suas actividades e garantam subsistência, os refugiados ocupam-se com o que podem, fazem pequenos negócios, auxiliam na manutenção das estruturas do campo, criam maneiras de seguirem activos.

David, completou o primeiro módulo do curso de Informática, patrocinado pela ACNUR e promovido pela Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo (ADPP), no Centro de Formação Profissional do Assentamento de Lóvua. Descobriu aí uma paixão.

Seu maior desejo é ser um profissional na área de informática e ir para universidade. Sonha em trabalhar em uma grande empresa e oferecer uma vida de mais conforto e dignidade não só à Claire, mas também agora inclui a família que os acolheu neste futuro que vislumbra, como forma de agradecimento por terem traduzido nas suas atitudes para com os irmãos o verdadeiro significado da palavra “Filho”.

“O mundo é mesmo assim, mas nós precisamos nos esforçar. Eu sigo os conselhos do papá e da mamã, para ser um bom homem na sociedade. Eu gosto de estudar. Da ajuda que recebo, o dinheiro pode acabar, mas se posso ter ajuda para estudar, vou ficar agradecido. Sou uma pessoa com capacidades para trabalhar, quero ser um informático e poder ajudar minha irmã, minha família com a mamã Genese e o papá Etienne”. Termina David com um lindo sorriso:

Eu quero ser grande.